quarta-feira, 2 de maio de 2012

JÁ FUI PARTEIRA

Parir era um acontecimento natural, embora cheio de rituais -  e de práticas estranhas à nossa civilização moderna -  vividos pelas diferentes civilizações.
Foi na modernidade que o parto passou a ser função dos médicos e realizados em hospitais, como se fossem casos de doença.
Sabe-se que havia mortalidade materna, mas ainda há. O fato é que as mulheres tinham que parir por meio natural, com a ajuda das parteiras. A pergunta que a gente faz é: por que, atualmente, é tão raro partos naturais? Por que as parturientes têm tantas dificuldades de alcançarem a dilatação que possibilite o parto natural? O que mudou?

Há quem diga que a vida das mulheres é mais sedentária. Talvez!

Tudo isso me fez lembrar que na minha história de militante já fiz um parto e ele me pareceu simples, embora tenha acontecido num ambiente muito precário. Vou contar. É verídico e certamente não vou conseguir expressar toda dimensão do susto, medo e emoção que vivi naquele dia.
Eu já havia passado dos 40 anos e já tinha meus 4 filhos, todos de cezariana, infelizmente, pois eu queria muito que tivessem nascido de parto natural ou parto vaginal, como diz meu filho Pedro.

Era vereadora em Restinga Seca e havia marcado uma reunião na comunidade de São Miguel, hoje uma reconhecida comunidade quilombola.
Estávamos (eu e um grupo de moradores) sentados sob a sombra dos cinamomos, numa grande roda. Debatíamos a luta da comunidade pela conquista de água potável canalizada.
No auge da discussão de alternativas, trouxeram-me uma senhora com ataque epilético, para que eu a levasse ao hospital. Interrompi a reunião, colocamos a senhora no banco traseiro do meu velho opala branco. Quando eu tentava dar partida, no meio do alvoroço, carro rodeado de gente, de todas as idades, nova gritaria:

-"Vereadora, dona Tereza, espera!"
- "A Jussara tá com as dor, leva ela junto, o nenê vai nascer!"
Olhei para o banco do carro, a mulher se debatendo. Saio correndo até a casinha da Jussara (a parturiente). Uma procissão de gente vai atrás de mim. A jussara fala:
- "não vai dar tempo dona, o nenê está nascendo, me ajuda!"
Volto para o carro, uns me chamam de um lado, outros de outro...uma confusão!
Alguém fala: "eu fico aqui no carro. Ela vai se debater um pouco mais mas depois passa, é sempre assim".
 D.Maria, mãe da Jussara, já me puxava para dentro do rancho e a Jussara gritava:" a senhora, que é estudada, segura meu bebê"!
Na porta, nas janelas, o povo se empilhava para ver o que acontecia dentro do rancho.Pedi que se afastassem, fechei as janelas e a porta.
Pedi ajuda a duas mulheres e à mãe de Jussara.

Tem água? não tinha!
Acharam um vidro com alccol.
Tem tesoura? não tinha. Acharam uma faca.
Algodão? Gaze? Não tinha.
Encontramos uma fralda numa mala onde estavam as roupas do nenê.
As outras mulheres sairam em busca de água.
Achamos, sob um velho guarda-roupa, um plástico que colocamos na cama, sobre uma toalha, para ajudar a proteger a cama.

O rancho, escurecido pela fumaça do fogão e com as janelas fechadas, estava quase na penumbra, iluminado apenas por um lampeão a querozene.
Pedi à Jussara que ficasse de cócoras sobre a cama, amparada pela mãe.
Molhei um pedaço da fralda no alcool e passei diversas vezes na faca e num barbante de costurar saco, que a D.Maria encontrou.
A Jussara chorava, nervosa, quis deitar, examinei e vi que a cabeça do bebê começava a apontar.
Falei: faz força, respira curtinho para não perder impulso. O bebê foi surgindo, percebi que o cordão umbilical estava enrolado no pescoço do bebê. Ia precisar ajudar. Passei alcool nas duas mãos, diversas vezes e agi. Desenrosquei o pescocinho, nem sei como fiz isso, fui puxando devagar e o nenê nasceu.
Não chorou. Não cortei o umbigo, ainda.
Ajeitei o bebê sobre o meu braço, inclinei o mesmo de lado e retirei da boca muita secreção. O nenê chorou e a Jussara também. Respiramos aliviadas. Choramos as três.Eu estava com a blusa molhada de suor e do rosto da Jussara escorria suor e lágrimas.

Aí sim, medi um espaço de 5 dedos acima do umbigo, amarrei bem firme o cordão umbilical e cortei.
Coloquei o nenê sobre a mãe, parou de chorar no mesmo instante e começou a chupar os dedinhos. Coisa mais linda! Cobri os dois e ficamos todas embevecidas, na penumbra, em silêncio, olhando, curtindo aquele momento mágico. Assim, quietas, esperávamos a vinda da placenta.
D.Maria falou: "filha, sopra com força no bico dessa garrafa, que a placenta vem."
Jussara obedeceu e veio a dita cuja. Pedi às duas mulheres, que já haviam chegado com um balde de água, que enterrassem a placenta.
D.Maria e eu, com uma bacia de água, ali mesmo no quarto, fizemos a higiene na mãe e no nenê. Vestimos os dois, cuidadosamente e de forma que ficassem bem arrumados e nos preparamos para ir ao hospital.

Quando abrimos a porta do barraco, fomos recebidos com uma grande salva de palmas pelos moradores que se juntaram no pátio da casa e na estrada. Fomos rodeadas de pessoas querendo ver o bebê. Ali mesmo a Jussara anunciou que o menino iria se chamar Samuel. Alguém já saiu para telefonar para o marido da Jussara que era operário em Canoas.

E a epilética? Estava de pé, junto com as demais pessoas. Levei ambas, mais o nenê e D.Maria ao hospital.
O médico de plantão examinou, constatou que tudo estava perfeito, mas eu insisti que Jussara pernoitasse no hospital. Já eram 18 horas daquele sábado de verão.Levei a epilética de volta, pois o médico falou que ela estava bem. Deu-me os parabéns. Jussara me falou que eu seria a madrinha do Samuel, que deve ter uns 13 anos atualmente. Só a vi uma vez, quando Samuel era, ainda, bebê. Não fui a madrinha, a familia mudou-se para Canoas. Me emociono quando penso que há um Samuel por este mundo que eu ajudei a trazer à luz.




2 comentários:

  1. Mais uma peripécia Dona Tereza?!?! Que história mais linda!!! De ainda maior coragem, desprendimento, ousadia e fé. Fico pensando nas coisas que a gente passa nessa vida para nos tornarmos o que somos e como, por outro lado, as pessoas, que normalmente viveram em verdadeiras bolhas porque muitas vezes possuem um nível socioeconômico melhor que o nosso ou sentem-se mais "letrados" insistem em nos desconstituir como sujeitos, como gente que tem e faz história. É, é a vida nos seus fluxos. Linda e emocionante relato amiga querida.

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  2. Tenho tantas histórias, mas sei que não tenho estilo pra escrever. Lembra algumas da Coordenadoria? Lembra aquela da merenda enterradsa? Daria uma boa e triste história. Aos poucos vou escrevendo, antes que a senilidade me faça esquecer todas. Beijos

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