segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

CECÍLIA LOUCA

Tantas coisas para escrever, mas preciso socializar essa lembrança que tem me perseguido.

Cecília louca foi uma personagem da minha infância e pré-adolescência. Era uma afrodescendente (como se diz hoje), cor de cuia escura, cabelo crespíssimo, característico dos negros, muito preto na raíz e com as pontas avermelhadas, do sol e da poeira e, dizem, nunca fora cortado ou teve as pontas aparadas. A cabeleira ostentava um descomunal volume e, talvez essa era a maior razão pela qual a chamavam de louca.

Mas era no cabelo que residia o mistério daquela mulher andarilha, moradora das estradas empoeiradas daquela localidade.
Por mais que se tentasse faze-la falar, jamais alguém viu seus documentos ou soube do seu sobrenome e sempre andava só.

Os moradores daquela localidade - um vilarejo rural chamado de São Gabriel, devido ao anjo padroeiro que havia na Capela da vila, hoje município de Ametista do Sul, situado entre Iraí e Frederico Westphalen - contavam muitas histórias sobre a Cecília Louca.
Os cabelos faziam parte das histórias. Diziam que ela tinha muita força e que a força vinha dos cabelos que nunca haviam sido cortados. Certamente inspiravam-se no personagem bíblico Sansão. E era essa força que fazia com que ninguém conseguisse cortar seus cabelos ou tirá-la das estradas de chão.

Cresci ouvindo que os cabelos eram, também, um grande problema, pois que serviam de esconderijo e morada de insetos e era por causa deles que ela se debatia, saia correndo, jogava-se na água...mas não os cortava.
Falavam que ela escondia nos cabelos o pouco dinheiro que conseguia, pedindo ou, diziam, roubando, embora ninguém jamais tivesse conseguido testemunhar nenhum ato ilícito da Cecília.

Muitas vezes cruzei com ela quando ia à escola ou quando ia no boteco comprar alguma encomenda de meus pais. Algumas vezes eu passei por ela em disparada, sem olhar para trás, de medo. Outras vezes me embrenhei nas trilhas pelo meio do potreiro ou das capoeiras, para evitar encontrá-la.
Um belo dia, numa dessas cruzadas, ela me chamou pelo nome.
Que susto! Como ela sabe o meu nome?

_ Terezinha, vem cá, não tenha medo!

Parei e olhei e daqueles lábios grossos brotou um sorriso escuro, semi-desdentado.
Cheguei perto, de mansinho, ela parou e me olhou com um olhar manso e eu vi de perto a cabeleira, os olhos grandes e muito escuros, a boca bem torneada. O medo passou e eu até achei ela menos feia. E concluí que ela tinha uma certa beleza.

Ela falou: _ Não precisa ter medo de mim, também sou gente!

E foi só. Saiu caminhando com o mesmo passo de andarilha. Em poucos minutos sumiu de minha vista.

Era uma mulher de estatura média, roupas surradas, um tamanco nos pés, usava vestido, mangas compridas, decote em vê, busto grande. Avalio, com a lembrança que tenho hoje, que ela deveria ter uns 35 anos. Falava pouco, só o necessário para pedir alimento e água.
Eu a vi outras vezes e uma ocasião a vi grávida, quando chegou em nossa casa e pediu água. Tomou a água sentada na grama do jardim, sem pressa e sem falar, com uma das mãos apoiadas na enorme barriga.
Passou uns tempos sumida e voltou sem barriga e sem o filho. Dizem que teve vários e que sempre doava e voltava a andar.

Ninguém sabia onde ela dormia. Não levava nada com ela. Nunca a vi com sacola ou algo parecido. Sumia e aparecia de repente. Esse mistério me atemorizava e me encantava.

Passei alguns anos fora da localidade, no colégio de freiras em Iraí. Voltei adolescente.
Em uma dessas voltas, de férias, eu, minha irmã e algumas colegas, a vimos novamente caminhando pelas estradas. O cabelo ainda maior, muito empoeirada e resolvemos fazer " um bem" à Cecília.
Estava decidido, iríamos enfrentar nossos medos e juntas iríamos cortar-lhe a imensa cabeleira, faze-la tomar banho e dar-lhe roupas novas e limpas.
Pensávamos conversar com ela, mas se ela não concordasse, nós a pegaríamos a força para a faxina.

Nos preparamos, observamos seus trajetos e um dia, tesoura na sacola, pegamos a estrada.
Andamos muito e a encontramos. Ela, parece ter adivinhado nossa intenção, não deixou nem que nos aproximássemos. Quanto mais a gente apertava o passo, mais ela andava e nos fazia de bobas. Ela se divertiu às nossas custas. Cansamos e desistimos.
Olhei para trás e a vi rindo. Foi a última vez que a vi.

Lembro-me de nosso pai ter dito, ao ouvir sobre nossa tentativa:
_Deixem a Cecília, ela gosta de viver assim. Não incomodem mais a pobre mulher!

Agora, passadas tantas décadas, eu me lembro seguido daquele episódio e fico pensando na nossa arrogância de adolescentes e no desrespeito também.
Hoje, quando penso na Cecília Louca, e penso seguidamente, eu me lembro da música "Geni" cantada por Chico Buarque e uma palavra me vem para definir as duas: generosidade.

A Geni, do Chico, significa uma homenagem às milhares de Cecílias Loucas que andam pelo mundo, sem que ninguém saiba quem são, de onde vieram. Vivem com tão pouco, doando o próprio corpo. Deixam filhos pelo mundo e deixam lembranças. Se aquela Cecília era louca? Hoje avalio que não. Ela era mansa, paciente e misteriosa.