quarta-feira, 22 de agosto de 2012

História de vida, sensibilidade social e cotas


Vou continuar apoiando iniciativas que tenham como objetivo reduzir desigualdades,
 construir mais equidade e justiça social e fico feliz que meus filhos
 continuem a se posicionar dessa forma e espero que melhorar de vida não
 os faça mudarem de lado e esquecerem suas raízes
 e sua responsabilidade humana e social.


História - Na década de 70, o Irineu e eu pegamos nossa filhinha de alguns meses e junto com uns amigos fomos morar na periferia de Porto Alegre (Vila Jardim). Movidos pelo compromisso em construir uma sociedade melhor, fomos juntos, de forma comunitária, tentar viver outro modo de vida.  Primeiro, simplesmente, morando no meio dos empobrecidos e depois a gente foi descobrindo, com eles, as formas de luta que poderíamos e precisaríamos implementar para superar as inúmeras dificuldades para viver com dignidade.
Em plena ditadura militar e com medo constante da repressão (que enfrentamos diversas vezes) fomos vivendo o dia a dia de uma vida de luta, mas também de aprendizado e de alegria, que se aprende no convívio com a “riqueza dos pobres”, de sua criatividade, sua capacidade de improvisar para sobreviver.
Éramos brancos, no meio de uma comunidade majoritariamente negra. Ser branco já é um passaporte de acesso na sociedade de história, mentalidade e práticas escravagistas. Mas nós estávamos lá, com a comunidade. A vida e o tempo foram mostrando as urgências. Fome, violência, lixo, esgoto a céu aberto, doenças... Tudo foi se evidenciando e nos atingindo também, de algum modo.



Personagens - Lembro-me da Jurema, moradora de um beco, que em duas gestações teve quatro filhos. O marido, funcionário de um frigorífico, trabalhava na câmara fria, e, doente dos pulmões, foi demitido. Desesperado, jogou-se de uma ponte e morreu. A Jurema, saia de madrugada, colocava os filhos nas portas das casas, sem avisar  e saia a fazer faxina. Voltava à noite, recolhia os filhos, agradecia e deixava um litro de leite para quem havia cuidado de seus filhos. A situação ficou tensa. Percebemos que eram muitas as Juremas da vida. Reunimos um grupo de pessoas, na maioria mulheres e criamos a “equipe do socorro”, estruturando no salão da igrejinha uma creche, com trabalho voluntário. Com meus conhecimentos de contadora, conseguimos captar recursos de empresas, legalizar a creche, que se firmou e, pelo que sei, ainda existe, hoje assumida pela Prefeitura. A Jurema pôde trabalhar sossegada, seus filhos eram alimentados e cuidados.
Era comum, mulheres baterem a nossa porta para pedir açúcar emprestado. Motivo? Adoçar a água para seus bebês, na falta do leite.
Lá presenciamos muito sofrimento, muita luta. Vimos as águas arrastarem barracos construídos sobre o valão do esgoto. Ajudamos enterrar as vítimas. Lá organizamos mobilizações, corremos da repressão, alfabetizamos adultos, reivindicamos os médicos de famílias, que se hospedavam em nossa casa. Organizamos assistência jurídica, entre outras coisas. Meu marido presidindo a associação de moradores da vila. Nesse período da ditadura, proliferavam as associações de moradores, forma de participação então permitida pela ditadura. Conquistada, evidentemente.
Não havia PT, não havia democracia.

Filhos - E no meio de toda essa luta foram nascendo os filhos. Dez anos depois nos mudamos para o interior de Restinga Seca, no meio dos pequenos agricultores. Pegamos o período da constituição de 1988  e participamos das mobilizações pelas conquistas sociais da “Constituição Cidadã”. Lutamos pela aposentadoria da mulher da roça, pelo SUS... Na nossa comunidade, as lutas do cotidiano para viver com dignidade: transporte escolar, por exemplo, que era caótico.
Ali tivemos mais uma filha, a quarta. Não iam à escola levados e trazidos de carro particular, não tinham acesso às aulas de reforço, de idiomas, à biblioteca no turno inverso, assim como também não tinham todos os outros filhos de moradores do interior. Era preciso estar cedo na estrada esperando aquele ônibus, desconfortável, quase sempre atrasado, naquelas estradas barrentas, algumas vezes caindo nos barrancos. Nossos filhos junto e nós também. Vimos muitos desistirem, rodarem sistematicamente, terem de abandonar a escola para ajudar no plantio do fumo.
Criar os filhos dessa forma educa e sensibiliza para a compreensão social. Só isso já bastaria para que nos posicionemos a favor de iniciativas de inclusão social e de redução das desigualdades econômicas e sociais, porque não basta ser igual perante a lei, a igualdade que interessa é a das condições de vida.



Negros - Mas sabemos, e meus filhos também sabem, que ao nascermos brancos, descendentes de imigrantes europeus já nascemos com um elemento a mais no nosso “currículo” de vida que nos facilita a acessibilidade. Entendemos que herdamos também as responsabilidades pela extorsão e pelo genocídio que nossos ancestrais europeus promoveram ao invadir as terras que hoje são o Brasil, tomando-as  dos índios, matando-os, escravizando (índios e negros). Quem não estudou sobre Domingos Jorge Velho, o bandeirante que “desbravava” as matas caçando índios, trazendo amarrados homens, que iam para o trabalho escravo, mulheres que eram estupradas e depois mortas, junto com seus filhos (alguns bebês), às vezes servindo de alvo para o treinamento de tiro?
Milhares morreram (tribos inteiras) de doenças transmitidas pelos brancos europeus.
E os negros? Porque será que os analfabetos, pobres e favelados são majoritariamente negros, até hoje?
Levam-se séculos para alterar realidades sociais.
Existem incontáveis documentos, legislações arquivadas, que provam a barreira social histórica contra os negros. Eram proibidos de votar, não podiam legalmente ser proprietários de terras, mesmo que pudessem comprá-las não as podiam registrar em cartório, isso até o início do século XX. Os filhos dos negros eram proibidos de irem às escolas, mesmo as poucas escolas públicas, que foram fundadas para os brancos. Os mortos negros não podiam ser enterrados nos cemitérios dos brancos e muito menos frequentar os clubes dos brancos e isso em pleno século XX. Se acontecia algum delito a polícia suspeitava e prendia, para averiguação, sempre os negros em primeiro lugar. Nesse caso, os negros sempre ocuparam os primeiros lugares. Ainda é assim.


Cotas - Creio que a classe média tem, sim, muitos motivos para lutar: pela qualidade da educação, que requer mudanças estruturais, com muito maior investimento, lutas contra a má qualidade dos alimentos, os pesticidas que geram tantas doenças, luta contra a abusiva tabela de Imposto de Renda em relação aos ganhos decorrentes do trabalho, que deveria ter as alíquotas reduzidas e aumentadas nos ganhos de capital e especulativos: dos bancos, das especulações imobiliárias e financeiras, dos latifundiários que não pagam IR. Lutas ambientais, etc.
A Lei de cotas pode até ter equívocos, ser eleitoreira, como alguns afirmam, mas tem um profundo caráter social, de solidariedade social. Durante sua aplicação, creio, será necessário ir aparando arestas, aperfeiçoando-a, e quem sabe, em algum tempo, ser possível dizer que não é mais necessária.
Tenho lido manifestações ressentidas contra essa lei, com argumentações precárias, o que me entristece.
Não gosto de ouvir que o Brasil não é um país sério quando se trata de leis de caráter social. Pode não ser sério por outras coisas como o modo predatório de produção, de desmatamento promovido por madeireiros inescrupulosos ou por criadores de gado, pela poluição e mau uso das águas, pelo modelo econômico neo-desenvolvimentista que isenta de IPI as indústrias automobilísticas e injeta dinheiro ao BNDS para setores empresariais grandes, que continuam desempregando trabalhadores. Pelo modo com que cuidamos dos alimentos, da natureza, do trânsito.
Mas nunca porque arrisca alguns programas sociais.

Vou continuar apoiando iniciativas que tenham como objetivo reduzir desigualdades, construir mais equidade e justiça social e fico feliz que meus filhos continuem a se posicionar dessa forma e espero que melhorar de vida não os faça mudarem de lado e esquecerem suas raízes e sua responsabilidade humana e social.