Vou continuar apoiando iniciativas que tenham como objetivo reduzir desigualdades,
construir mais equidade e justiça social e fico feliz que meus filhos
continuem a se posicionar dessa forma e espero que melhorar de vida não
os faça mudarem de lado e esquecerem suas raízes
e sua responsabilidade humana e social.
História - Na década de 70, o Irineu e eu
pegamos nossa filhinha de alguns meses e junto com uns amigos fomos morar na
periferia de Porto Alegre (Vila Jardim). Movidos pelo compromisso em construir
uma sociedade melhor, fomos juntos, de forma comunitária, tentar viver outro
modo de vida. Primeiro, simplesmente,
morando no meio dos empobrecidos e depois a gente foi descobrindo, com eles, as
formas de luta que poderíamos e precisaríamos implementar para superar as
inúmeras dificuldades para viver com dignidade.
Em plena
ditadura militar e com medo constante da repressão (que enfrentamos diversas
vezes) fomos vivendo o dia a dia de uma vida de luta, mas também de aprendizado
e de alegria, que se aprende no convívio com a “riqueza dos pobres”, de sua
criatividade, sua capacidade de improvisar para sobreviver.
Éramos
brancos, no meio de uma comunidade majoritariamente negra. Ser branco já é um
passaporte de acesso na sociedade de história, mentalidade e práticas
escravagistas. Mas nós estávamos lá, com a comunidade. A vida e o tempo foram
mostrando as urgências. Fome, violência, lixo, esgoto a céu aberto, doenças...
Tudo foi se evidenciando e nos atingindo também, de algum modo.
Personagens - Lembro-me da Jurema, moradora de um
beco, que em duas gestações teve quatro filhos. O marido, funcionário de um
frigorífico, trabalhava na câmara fria, e, doente dos pulmões, foi demitido.
Desesperado, jogou-se de uma ponte e morreu. A Jurema, saia de madrugada,
colocava os filhos nas portas das casas, sem avisar e saia a fazer faxina. Voltava à noite, recolhia
os filhos, agradecia e deixava um litro de leite para quem havia cuidado de
seus filhos. A situação ficou tensa. Percebemos que eram muitas as Juremas da
vida. Reunimos um grupo de pessoas, na maioria mulheres e criamos a “equipe do
socorro”, estruturando no salão da igrejinha uma creche, com trabalho
voluntário. Com meus conhecimentos de contadora, conseguimos captar recursos de
empresas, legalizar a creche, que se firmou e, pelo que sei, ainda existe, hoje
assumida pela Prefeitura. A Jurema pôde trabalhar sossegada, seus filhos eram
alimentados e cuidados.
Era comum,
mulheres baterem a nossa porta para pedir açúcar emprestado. Motivo? Adoçar a
água para seus bebês, na falta do leite.
Lá
presenciamos muito sofrimento, muita luta. Vimos as águas arrastarem barracos
construídos sobre o valão do esgoto. Ajudamos enterrar as vítimas. Lá
organizamos mobilizações, corremos da repressão, alfabetizamos adultos,
reivindicamos os médicos de famílias, que se hospedavam em nossa casa.
Organizamos assistência jurídica, entre outras coisas. Meu marido presidindo a
associação de moradores da vila. Nesse período da ditadura, proliferavam as
associações de moradores, forma de participação então permitida pela ditadura.
Conquistada, evidentemente.
Não havia
PT, não havia democracia.
Filhos - E no meio de toda essa luta foram
nascendo os filhos. Dez anos depois nos mudamos para o interior de Restinga
Seca, no meio dos pequenos agricultores. Pegamos o período da constituição de
1988 e participamos das mobilizações
pelas conquistas sociais da “Constituição Cidadã”. Lutamos pela aposentadoria
da mulher da roça, pelo SUS... Na nossa comunidade, as lutas do cotidiano para
viver com dignidade: transporte escolar, por exemplo, que era caótico.
Ali tivemos
mais uma filha, a quarta. Não iam à escola levados e trazidos de carro
particular, não tinham acesso às aulas de reforço, de idiomas, à biblioteca no
turno inverso, assim como também não tinham todos os outros filhos de moradores
do interior. Era preciso estar cedo na estrada esperando aquele ônibus,
desconfortável, quase sempre atrasado, naquelas estradas barrentas, algumas
vezes caindo nos barrancos. Nossos filhos junto e nós também. Vimos muitos
desistirem, rodarem sistematicamente, terem de abandonar a escola para ajudar
no plantio do fumo.
Criar os
filhos dessa forma educa e sensibiliza para a compreensão social. Só isso já
bastaria para que nos posicionemos a favor de iniciativas de inclusão social e
de redução das desigualdades econômicas e sociais, porque não basta ser igual
perante a lei, a igualdade que interessa é a das condições de vida.
Negros - Mas sabemos, e meus filhos também
sabem, que ao nascermos brancos, descendentes de imigrantes europeus já
nascemos com um elemento a mais no nosso “currículo” de vida que nos facilita a
acessibilidade. Entendemos que herdamos também as responsabilidades pela
extorsão e pelo genocídio que nossos ancestrais europeus promoveram ao invadir
as terras que hoje são o Brasil, tomando-as dos índios, matando-os, escravizando (índios e
negros). Quem não estudou sobre Domingos Jorge Velho, o bandeirante que
“desbravava” as matas caçando índios, trazendo amarrados homens, que iam para o
trabalho escravo, mulheres que eram estupradas e depois mortas, junto com seus
filhos (alguns bebês), às vezes servindo de alvo para o treinamento de tiro?
Milhares
morreram (tribos inteiras) de doenças transmitidas pelos brancos europeus.
E os negros?
Porque será que os analfabetos, pobres e favelados são majoritariamente negros,
até hoje?
Levam-se
séculos para alterar realidades sociais.
Existem
incontáveis documentos, legislações arquivadas, que provam a barreira social
histórica contra os negros. Eram proibidos de votar, não podiam legalmente ser
proprietários de terras, mesmo que pudessem comprá-las não as podiam registrar
em cartório, isso até o início do século XX. Os filhos dos negros eram
proibidos de irem às escolas, mesmo as poucas escolas públicas, que foram
fundadas para os brancos. Os mortos negros não podiam ser enterrados nos
cemitérios dos brancos e muito menos frequentar os clubes dos brancos e isso em
pleno século XX. Se acontecia algum delito a polícia suspeitava e prendia, para
averiguação, sempre os negros em primeiro lugar. Nesse caso, os negros sempre
ocuparam os primeiros lugares. Ainda é assim.
Cotas - Creio que a classe média tem, sim,
muitos motivos para lutar: pela qualidade da educação, que requer mudanças
estruturais, com muito maior investimento, lutas contra a má qualidade dos
alimentos, os pesticidas que geram tantas doenças, luta contra a abusiva tabela
de Imposto de Renda em relação aos ganhos decorrentes do trabalho, que deveria
ter as alíquotas reduzidas e aumentadas nos ganhos de capital e especulativos:
dos bancos, das especulações imobiliárias e financeiras, dos latifundiários que
não pagam IR. Lutas ambientais, etc.
A Lei de cotas
pode até ter equívocos, ser eleitoreira, como alguns afirmam, mas tem um
profundo caráter social, de solidariedade social. Durante sua aplicação, creio,
será necessário ir aparando arestas, aperfeiçoando-a, e quem sabe, em algum
tempo, ser possível dizer que não é mais necessária.
Tenho lido
manifestações ressentidas contra essa lei, com argumentações precárias, o que
me entristece.
Não gosto de
ouvir que o Brasil não é um país sério quando se trata de leis de caráter
social. Pode não ser sério por outras coisas como o modo predatório de
produção, de desmatamento promovido por madeireiros inescrupulosos ou por criadores
de gado, pela poluição e mau uso das águas, pelo modelo econômico
neo-desenvolvimentista que isenta de IPI as indústrias automobilísticas e
injeta dinheiro ao BNDS para setores empresariais grandes, que continuam
desempregando trabalhadores. Pelo modo com que cuidamos dos alimentos, da
natureza, do trânsito.
Mas nunca
porque arrisca alguns programas sociais.
Vou
continuar apoiando iniciativas que tenham como objetivo reduzir desigualdades,
construir mais equidade e justiça social e fico feliz que meus filhos continuem
a se posicionar dessa forma e espero que melhorar de vida não os faça mudarem
de lado e esquecerem suas raízes e sua responsabilidade humana e social.