Há
uns cinco ou seis anos, eu e meu companheiro Irineu começamos a planejar
viagens. Antes priorizávamos a família: criar, cuidar e garantir condições para
que nossos quatro filhos estudassem. Não sobrava dinheiro e nem tempo para viajar.
As pequenas viagens que fazíamos eram a serviço, ou enquanto militantes e alguma
saída de férias com a família em lugares próximos.
Viajávamos
nas leituras e sonhávamos em poder conhecer mais a diversidade da riqueza
cultural dos diferentes povos, dentro e fora do Brasil. A primeira viagem maior
que fizemos foi há cinco anos, quando fomos ao Chile, Bolívia e Perú.
Ano
passado fomos conhecer o Rio de Janeiro (presente de nossa filha Alice). Viagem
inesquecível. Rio maravilha, de fato.
Todas
as viagens tiveram, é claro, o encantamento com os lugares desconhecidos e com
as culturas locais. Antes de chegarmos ao nosso destino, a gente se prepara,
estudando um pouco a geografia dos lugares, o clima, a economia, a situação
política, a diversidade cultural e histórica. Em todas as viagens, procuramos
praticar um olhar mais investigativo,
curioso e aberto, buscando conhecer, um pouco pelo menos, a cultura viva
da população, para além das informações turísticas convencionais dos guias.
Obviamente que enfrentamos os limites das dificuldades de comunicação com os
idiomas diferentes.
Salvador: história, cultura e
sincretismo
Na
viagem a Salvador, em maio deste ano, foi mais fácil esse diálogo com os
sujeitos locais e com os eventos e lugares de visitação porque fomos
carinhosamente acolhidos e acompanhados por um casal de amigos muito queridos,
Beatriz e Antoninho. Hospedaram-nos e nos levaram aos lugares históricos e de
manifestações populares, como por exemplo, na casa da Mãe Menininha de Gantoa.
Em
Salvador, o centro histórico fala por si só. Lá a gente vê fartamente os
casarios antigos, preservados, alguns com o desgaste do tempo. O Pelourinho e arredores
são fartos em igrejas antigas e prédios históricos, lindos, bem preservados,
cheios de pequenos comércios e de artesanato e obras de arte.
Andamos por aquelas ruas e vielas, perguntando
e ouvindo. Notamos que o baiano de Salvador conhece e valoriza sua cultura e
sua história. Não rejeita sua negritude, se orgulha dela, vive sua cultura que
é fruto de uma secular resistência. Lá os estranhos éramos nós; por causa da brancura
da pele, por diversas vezes fui abordada em inglês e confundida com uma
estrangeira.
Em
um dos dias da viagem, fomos com nossos amigos numa missa, na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário no Pelourinho. Uma igreja que desde os tempos da escravidão
era o lugar em que os negros iam à missa, obrigatória, mas separada das igrejas
dos senhores de escravos, a igreja de São Francisco, toda cravejada de ouro, na
praça da Sé, que, conforme nos relataram, era a Igreja dos Senhores. Participamos
dessa missa, em que se manifestava, de forma clara, o Sincretismo religioso:
missa católica, mas com o som dos tambores, da dança afro, da linguagem e refrãos
que se ouviu também no Candomblé. Sim, fomos ao terreiro da Mãe Menininha e lá
encontramos o mesmo padre que rezou a missa no dia anterior. Na igreja, além da
imagem de Maria, havia diversos santos negros, que eu nem conhecia. A força e o
vigor com que rezavam e cantavam nos comoveu.
O
terreiro do candomblé, as imagens dos orixás, que são amplamente conhecidos do
povo baiano, se encontram na periferia, mas são frequentados por ricos e pobres
no mesmo terreiro, como foi com Jorge Amado e Antônio Carlos Magalhães, dois
assíduos frequentadores, segundo relato das pessoas. Um de esquerda (Jorge
Amado) outro e direita.
Visitamos
a casa de Jorge Amado e Zélia Gatai. Um lugar em que se respira a Bahia. A
literatura, a culinária, o candomblé, tudo exposto em obras de arte, cenários
onde moravam Jorge e Zélia, plenamente preservados e com recursos tecnológicos,
interagiam com o público e contavam histórias, explicavam o candomblé e as
obras de Jorge e Zélia.
Conversamos
muito com os taxistas e motoristas de uber, bem como com os vendedores na praia.
Passeamos pelas ruas, frequentamos os botecos (inclusive provamos da cachaça
famosa do boteco Cravinho). Gente muito comunicativa.
As diferenças culturais
Uma
pergunta que procede: Por que em Salvador e na Bahia há uma efervescência
cultural fortíssima, diversificada e múltipla que se espraia por todo o Brasil,
e em outras regiões brasileiras as culturas populares se limitam aos contornos
geográficos da região?
Paulo
Leminski, observando essas diferenças, escreve que este contraste deve-se ao
fator humano que se estabeleceu no início da colonização brasileira. Do Rio de
Janeiro até o nordeste e parte do norte, a presença do negro é majoritária na
constituição popular. O negro que de dia era escravo, à noite, na senzala,
cultuava seus deuses, os Orixás, suas danças, seus modos de vida. Obrigados a
serem batizados e cultuar os santos e divindades católicas, criavam as paridades
dos santos católicos com os deuses orixás. Sobreviveram e resistiram para além
da imposição da Igreja Católica e da Casa Grande. É a própria antropofagia de
Oswald de Andrade. Deglutir, digerir tudo e aproveitar o que faz bem e expelir
o que não lhes era significativo.
Leminski
continua: de São Paulo até o sul predomina a dominação escrava catequética em
reduções indígenas. A vida nas reduções era extremamente vigiada pelos Jesuítas,
na tentativa de apagar da memória indígena todas as suas tradições, ritos e
celebrações.
Para
o centro Sul também vieram as migrações europeias que sofriam e viviam forte
controle da Igreja Católica, da ideologia do trabalho, em que o lazer, a festa,
a celebração, a dança, não faziam parte do cotidiano a não ser esporadicamente.
É possível concluir, simplificando um pouco, que a força e a diversidade
cultural de uma população têm a ver com a diversidade da cultura popular, em
que a música, o cinema, as artes em geral, encontram inspiração.
Viajar
é inspirador e em Salvador foi muito mais pelos diálogos com nossos anfitriões
que se estendiam noite adentro, regados a vinho e muito afeto.