segunda-feira, 30 de agosto de 2010

LEMBRANÇA BOA


São Miguel, comunidade Quilombola, em Restinga Seca. Ano de 1996. Verão. Um calor e uma seca medonhos! Eu era vereadora, daquelas que se fazia presente nas lutas das comunidades.
Naquela tarde (o dia não lembro mais) peguei nosso velho Opala branco e fui numa reunião, a convite dos moradores do Quilombola, para debater e ajudar na luta pela conquista de água nas torneiras das casas da comunidade. Uma luta antiga.

Estávamos conversando, numa roda, sob a sombra de um pé de plátano. De repente, alguém chega gritando: " a Jurema está com ataque" (era epilética).
Colocaram-na no Opala, interrompemos a reunião e quando íamos sair para levá-la ao Hospital, na cidade, novo chamado: "Peraí, peraí, a Jussara tá com as dor, leva ela também, ela vai ganha nenê".
"Não dá", disse a Jussara," já tá nascendo".
Juntou gente, alguém comentou que a parteira viajou e a outra, que também fazia parto, se recusava a ajudar, porque se incomodou com a Justiça por ter feito um parto e o nenê ter morrido logo que nasceu.
Aí eu falei: "eu também não posso fazer parto. Não entendo disso".
"Mas o nenê tá nascendo, vai nascer no carro, a senhora é mãe e é estudada, tem que me ajudar".
Enquanto isso a epilética se debatia, amparada por algumas senhoras.
Vamos lá, seja o que Deus quiser. Rezei e entrei no barraco. "Precisamos de água, alcool, tesoura, cordão, forro de plástico pro colchão, etc."

A casa não tinha luz elétrica. Não tinha água. As paredes eram pretas de fumaça. Na única janela do quarto, umas dez pessoas apinhavam-se tentando espiar. Pedi licença, fechei a janela e solicitei ajuda à D. Maria, mãe da parturiente.
Jussara era uma negra bonita, alta, magra e forte. Já tinha dois filhos, ainda pequenos, que a tia levou para sua casa enquanto fazíamos o parto, sob a luz de um pequeno lampeão à querozene.
Encontramos um plástico, forramos a cama. A água não havia chegado. A única e escassa fonte ficava longe (uns trezentos metros).
D. Maria encontrou um litro de alcool. Tesoura não havia. Faca, só de mesa. Desinfetei as mãos com alcool e fiquei incentivando a Jussara a fazer força. Orientei sobre a respiração, ela já sabia e fez tudo direitinho.
O bebê apareceu, ajudei a liberar o cordão umbilical enroscado no pescoço do neném. Nasceu, era um guri, grande, não chorou. Não cortei o cordão, coloquei o bebê sobre a mãe, de lado, abri com cuidado, a boquinha, inclinei o bebê e coloquei o dedo na boca para retirar a secreção. Numa golfada veio tudo, um montão de "coisas" gosmentas. O nenê chorou forte. Meu Deus, que alívio!
Após desinfetar um barbante e uma gilete com alcool, amarei o cordão e o cortei. Que emoção!

Respirei fundo, aí dei os parabéns à mãe e à avó. As duas choraram de alegria e alívio. A avó foi até a porta e abrindo uma fresta falou pros interessados que tudo ia bem, que o nenê nasceu.
A água chegou, higienizamos o bebê, enrolamos num cobertor e o entregamos à mãe.
Ficamos à espera da placenta. Como demorava um pouco, D. Maria sugeriu que ela soprasse no bico de uma garrafa pra fazer força. Achei pertinente. Pedi que ela ficasse de cócoras, soprando, soprando...A placenta desceu. D.Maria falou que ia dar aos cachorros, e Jussara quase gritou: Não! Sugeri que enterrassem fundo. D.Maria foi, pessoalmente, enterrar a placenta.

Jussara se vestiu, vestimos o bebê, com roupas emprestadas, que a irmã de Jussara trouxe de casa. Jussara falou que esperava o nenê para daí a uns trinta dias. Não fez pré-natal e errou nas contas. Esperava o marido chegar de Canoas, onde trabalhava, para, então, comprar o enxovalzinho. Não deu tempo.
Jussara, vaidosa, pegou no armário uma caixa, com uma camisola e um roupão novinhos, para levar ao Hospital. Sim, falei que eu a levaria ao Hospital. Ela e o Samuel (era o nome que deu ao bebê).
Vestimos o bebê e quando abrimos a porta para sair, havia uma assembléia dos moradores na estrada, em frente ao barraco. Fomos acolhidos com uma salva de palmas.

Na platéria, já de pé, Jurema batia palmas, o ataque havia passado. Nem quis ir ao Hospital.
O médico examinou Jussara e me disse: " Bom trabalho, está tudo perfeito, o nenê também está ótimo".
Já eram vinte horas. Iam dormir no hospital, apenas para observação. No outro dia dariam alta.
Jussara nos visitou uns anos depois. O guri era forte e lindo. Nunca mais os vi. Mudaram-se para Canoas, onde o marido trabalhava.

Apesar da falta d'água, me chamou a atenção, a cama muito bem arrumada, cujas roupas me pareceram alvas, frente à cor cinza-escuro das paredes. Na cozinha, numa prateleira, brilhavam as panelas de alumínio, limpíssimas, bem como a chapa do fogão a lenha.
E olha que não é fácil manter roupas e panelas tão limpas e fazer a higiene pessoal e das crianças, sem água encanada, tendo que caminhar trezentos metros até a fonte, transportando água em baldes e no caso da Jussara, pior ainda, grávida, com duas crianças para cuidar e com o marido ausente.

Esse episódio me ajudou a entender mais a vida das mulheres pobres e a garra e resistência na luta pela vida. Me ajudou a combater em mim mesma, o preconceito com os negros e com os pobres. Estive presente nas lutas desse Quilombola durante anos. Aprendi muito com aquela comunidade de negros.

2 comentários:

  1. Oi Teresa! Acredita que ainda lembro com detalhes o dia que nos contaste isso na aula? Teus olhos estavam enormes e tu ainda estavas muito nervosa e emocionada... puxa vida, fazer um parto não é para qualquer um... Lembro que contaste que quando chegaram ao hospital os médicos nem sabiam qual era a parturiente pois tu estavas mais assustada e ensanguentada do que a mãe do bebê... rsrsrsrs...um beijo fabiana

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  2. Nem lembrava que tinha contado pra vocês essa história> Que bom que lembrastes e que lês meu blog. Qualquer dia quero te visitar. Tenho saudades daquele tempo. Beijos

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